domingo, 4 de julho de 2010

LEI DA FICHA LIMPA: APONTAMENTOS ACERCA DE SUA (IN)APLICABILIDADE

A ainda recém-nascida Lei da Ficha Limpa (lei complementar n. 135, de 04 de junho de 2010) já coleciona vitórias e alguns reveses em seu pouco tempo de existência.
O Tribunal Superior Eleitoral – TSE, na ocasião do julgamento de duas consultas (Consulta Nº 112026, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, e Consulta Nº 114709, Rel. Min. Arnaldo Versiani) já se pronunciou no sentido de que a lei valerá nas eleições de 2010, bem como, que os seus efeitos se aplicam a condenações passadas.
Por outro lado, em sede de liminar, os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, ambos do Supremo Tribunal Federal – STF, manifestaram-se de maneira favorável a dois parlamentares, suspendendo decisões que tornariam parlamentares inelegíveis (RE 281.012/PI e AI 709.634). Entretanto, outros pedidos similares não obtiveram o mesmo sucesso na Corte Excelsa, v. g. as ações cautelares n. 2.654, 2.661 e 2.665, todas de relatoria do Ministro Ayres Britto, que no bojo da AC 2.654 defendeu que “Se não é qualquer condenação judicial que torna um cidadão inelegível, mas unicamente aquela decretada por um "órgão colegiado", apenas o órgão igualmente colegiado do tribunal ad quem é que pode suspender a inelegibilidade”.
Diante de tais fatos, surgem algumas questões em relação a aplicabilidade da referida lei, importante de se frisar, de iniciativa popular (notemos que este que vos escreve assinou a propositura da lei em comento). A primeira questão importante é relacionada ao Princípio da Anterioridade da Lei Eleitoral, previsto no art. 16 da Constituição da República, segundo o qual:

Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 4, de 1993)

A partir da aplicação deste dispositivo a Lei da Ficha Limpa não poderia ser aplicada às eleições de 2010, contudo, como já visto acima, o TSE considerou, deixando de lado a Carta Republicana, que a lei seria aplicada às próximas eleições, alegando que como o período eleitoral ainda não teve início a mudança não prejudica os possíveis concorrentes.
A decisão judicial do TSE claramente desconsiderou o texto constitucional que, neste ponto, é considerado cláusula pétrea, por ser uma garantia individual do cidadão eleitor, e sua ofensa viola a segurança jurídica e o devido processo legal (ADIn 3.685/DF, Rel. Min. Ellen Gracie).
Outro ponto a ser debatido é o fato de o TSE ter decidido que a inelegibilidade prevista na Lei da Ficha Limpa, que é de 08 (oito) anos, possa ser aplicada a condenações anteriores a vigência da lei.
Para análise deste ponto, cabe recorrer ao art. 5º, XXXVI, da nossa Norma Suprema, onde se lê que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, pela decisão do TSE a lei complementar n. 135 retroagirá em seus efeitos para atingir condenação anteriores, prejudicando as coisas outrora julgadas. Por ocasião deste julgamento, o Min. Marcelo Ribeiro advertiu que seria uma incoerência, por exemplo, que um político condenado por abuso de poder e que tenha recebido uma pena de inelegibilidade por 03 (três) anos, conforme a regra anterior, passasse, agora, sem novo julgamento, a ficar inelegível por 08 (oito) anos, pela simples aplicação da nova lei (Caso por exemplo como o do Governador cassado do Estado do Maranhão Jackson Lago).
Mais uma vez o TSE feriu a segurança jurídica com o teor de sua decisão.
Ambas as decisões podem ser, e provavelmente serão, apreciadas pelo STF, mas, parece-nos aqui que o Tribunal levou bastante em conta, talvez obscuramente, que a Lei da Ficha limpa reflete uma pujante vontade popular de moralização da política nacional (lembremos que a lei é resultado de um projeto de iniciativa popular subscrito por mais de 1,6 milhão de cidadãos, inclusive, por este que vos escreve) para decidir maximizando os efeitos da lei. O povo quis esta lei, mas a pressa em aplicá-la mitiga o sistema constitucional e a segurança jurídica e, consequentemente, por mais que a maioria da população não possa perceber, enfraquece o próprio povo que fica a mercê dos decisionismos ao arrepio da Constituição.
As citadas decisões judiciais apesar de largamente aplaudidas (eu como indivíduo provavelmente desejo que a lei produza efeitos assim, mas como jurista e cidadão não posso admitir esta afronta antidemocrática ao texto constitucional), são, se podemos assim dizer, inconstitucionais. A letra da Carta Magna não está lá sem motivo, como afirma Lênio Streck em seu Verdade e Consenso (3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 164-165), vez que devemos levar o texto a sério e deixar que ele nos diga algo, completando,
“Texto é evento; textos não produzem “realidades virtuais”; textos não são meros enunciados linguísticos; textos não são palavras ao vento, conceitos metafísicos que não digam respeito a algo (algo como algo). Eis a especificidade do direito: textos são importantes; textos nos importam; não há norma sem texto; mas nem eles são “plenipotenciários”, carregando seu próprio sentido (...) e não são desimportantes, a ponto de permitir que sejam ignorados pelas posturas pragmatistas-subjetivistas, em que o sujeito assujeita o objeto (ou, simplesmente, o inventa)”.

Este que escreve a vós não é contra a Lei da Ficha Limpa, mas apenas discorda de como o TSE escolheu aplicá-la, ferindo os art. 5º, XXXVI e art. 16 da Constituição. Não confundamos democracia com a mera vontade da maioria nem aceitemos que os julgadores julguem conforme o bom agrado (seu e dos seus).

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